top of page

À sombra do Holocausto - Como a política da memória na Europa obscurece o que vemos hoje em Israel e Gaza.

Acima de reportagem ou artigo de opinião, este ensaio existencial solidamente embasado em fatos, repleto de nuanças históricas raramente exploradas em veículos comerciais estabelecidos no topo das vitrinas ocidentais de informação política, tem quase 8 mil palavras e demanda cerca de 30 minutos de leitura dedicada, tendo sido por tudo isso originalmente publicado na seção "Crônica de fim de semana" da revista New Yorker (9 DEZ 2023). Você pode checar o original aqui: https://www.newyorker.com/news/the-weekend-essay/in-the-shadow-of-the-holocaust Por Masha Gessen (credenciais ao final)

 

Berlim nunca para de nos lembrar do que aconteceu lá. Vários museus analisam o totalitarismo e o Holocausto; o Memorial aos Judeus Assassinados da Europa ocupa um quarteirão inteiro da cidade. Em certo sentido, porém, essas grandes instalações são o menos importante. Os memoriais que se aproximam sorrateiramente (o monumento aos livros queimados, que fica literalmente no subsolo, e os milhares de Stolpersteine, ou "pedras de tropeço", incrustadas nas calçadas para homenagear judeus, sinti, ciganos, homossexuais, doentes mentais e outros assassinados pelos nazistas) revelam a abrangência dos horrores cometidos neste lugar. No início de novembro, quando eu caminhava até a casa de uma amiga na cidade, passei pelo totem de informações que marca o local do bunker de Hitler. Eu já havia passado por ali muitas vezes antes. Parece um quadro de avisos de escola, mas conta a história dos últimos dias do Führer.

 

No final dos anos 1990 e início dos anos 2000, quando muitos desses memoriais foram concebidos e instalados, visitei Berlim com frequência. Foi emocionante ver a cultura da memória tomar forma. Ali estava um país, ou pelo menos uma cidade, que estava fazendo o que a maioria das culturas não consegue fazer: olhar para seus próprios crimes, seu pior eu. Mas, em algum momento, o esforço começou a se mostrar congelado, “envitrinado”, como se fosse um esforço não apenas para lembrar a história, mas também para garantir que apenas aquela história específica fosse lembrada - e apenas daquela maneira. Isso é verdade no sentido físico e visual. Muitos dos memoriais são envidraçados: o Reichstag, um edifício quase destruído durante a era nazista e reconstruído meio século depois, agora é coberto por uma cúpula de vidro; o memorial aos livros queimados [pelo regime nazista] é visto através de uma vidraça; divisórias e painéis de vidro ordenam a impressionante coleção, antes aleatória, chamada "Topografia do Terror". Como me disse Candice Breitz, uma artista judia sul-africana que vive em Berlim: "As boas intenções que surgiram na década de 1980 muitas vezes se solidificaram em dogmas".


Entre os poucos espaços em que a representação da memória não está encenada em aparente perpetuidade estão algumas galerias do novo prédio do Museu Judaico, concluído em 1999. Quando visitei o local, no início de novembro, uma galeria no andar térreo exibia uma instalação de vídeo chamada "Rehearsing the Spectacle of Spectres" [ensaiando um espetáculo de fantasmas]. O vídeo se passava no Kibbutz Be'eri, a comunidade onde, em 7 de outubro, o Hamas matou mais de 90 pessoas - quase um em cada dez residentes - durante seu ataque a Israel, que acabou ceifando mais de 1200 vidas. No vídeo, os moradores de Be'eri se revezam para recitar os versos de um poema de um dos membros da comunidade, o poeta Anadad Eldan: "...do pântano entre as costelas / ela fez emergir quem havia submergido em você / e você está coagido a não gritar / caçando as figuras em fuga lá fora". O vídeo, dos artistas israelenses radicados em Berlim Nir Evron e Omer Krieger, foi concluído há nove anos. Ele começa com uma vista aérea da área, com a Faixa de Gaza visível, e depois aproxima em lento zoom as casas do kibutz, algumas das quais pareciam bunkers. Não tenho certeza do que os artistas e o poeta pretendiam transmitir inicialmente; agora a instalação parecia uma expressão de luto por Be'eri. (Eldan, que tem quase 100 anos de idade, sobreviveu ao ataque do Hamas).


Ao final do corredor, está um dos espaços que o arquiteto Daniel Libeskind, que projetou o museu, chamou de "vazios" - poços de luz que perfuram o prédio, simbolizando a ausência de judeus na Alemanha ao longo de gerações. Ali, uma instalação do artista israelense Menashe Kadishman, intitulada "Fallen Leaves" [folhas despencadas], composta por mais de 10 mil discos espessos de ferro, vazados com olhos e bocas, feito moldes de desenhos infantis de rostos gritando. Quando você caminha ali, pisando sobre esses "rostos", eles emitem ruídos, feito algemas se batendo ou como o cabo de um rifle sendo carregado.

 

Kadishman dedicou o trabalho às vítimas do Holocausto e a outras vítimas inocentes da guerra e da violência. Não sei o que Kadishman, falecido em 2015, teria dito sobre o conflito atual. Mas, depois que passei do vídeo assombroso do Kibbutz Be'eri para os rostos de ferro que emitiam ruídos, pensei nos milhares de residentes de Gaza mortos por retaliação às vidas dos judeus mortos pelo Hamas. Em seguida, pensei que, se eu expressasse isso publicamente na Alemanha, poderia me meter numa enrascada.

 

Em 9 de novembro, para marcar o 85º aniversário da Kristallnacht [Noite dos Cristais, perseguição de milícias nazistas a judeus e suas propriedades], uma estrela de Davi e a frase "Nie Wieder Ist Jetzt!" - "Nunca Mais é Agora!" - foram projetadas em branco e azul [as cores nacionais de Israel] no Portão de Brandemburgo, em Berlim. Naquele dia, o Bundestag estava analisando uma proposta intitulada "Cumprir uma responsabilidade histórica: proteger as vidas judaicas na Alemanha", que continha mais de 50 medidas destinadas a combater o antissemitismo na Alemanha, incluindo a deportação de imigrantes que cometessem crimes antissemitas; intensificação de ações contra o movimento Boycott, Divestment, and Sanctions [Boicote, Desinvestimento e Sanções, BDS); o apoio a artistas judeus "cujo trabalho critica o antissemitismo"; implementação de uma definição específica de antissemitismo nas decisões de financiamento e policiamento; e uma intensificação da cooperação entre as forças armadas alemãs e israelenses. Em comentários anteriores, o vice-chanceler alemão, Robert Habeck, que é membro do Partido Verde, disse que os muçulmanos na Alemanha deveriam "distanciar-se claramente do antissemitismo para não prejudicar seu próprio direito a serem tolerados".

 

A Alemanha há muito tempo regulamenta as formas pelas quais o Holocausto é lembrado e discutido. Em 2008, quando a então chanceler Angela Merkel discursou perante o Knesset [parlamento israelense], no 60º aniversário da fundação do Estado de Israel, ela enfatizou a responsabilidade especial da Alemanha não apenas pela preservação da memória do Holocausto, como uma atrocidade histórica única, mas também pela segurança de Israel. Isso, continuou ela, fazia parte da “raison d'état” da Alemanha - a razão da existência daquele Estado. Desde então, este sentimento tem sido repetido na Alemanha, aparentemente toda vez que surge o tópico de Israel, judeus ou antissemitismo, inclusive nos comentários de Habeck. “A frase 'a segurança de Israel faz parte da raison d'état da Alemanha’ nunca foi uma frase vazia”, disse ele. “E não deve se tornar uma.”

 

Ao mesmo tempo, ocorreu um debate obscuro, mas estranhamente consequente, sobre o que constitui o antissemitismo. Em 2016, a Aliança Internacional para a Lembrança do Holocausto [IHRA, na sigla em inglês], uma organização intergovernamental, adotou a seguinte definição: “O antissemitismo é uma certa percepção dos judeus, que pode ser expressa como ódio contra eles. As manifestações retóricas e físicas do antissemitismo são dirigidas a indivíduos judeus ou não judeus e/ou a suas propriedades, a instituições comunitárias judaicas e a instalações religiosas.” Essa definição foi acompanhada de 11 exemplos, que começaram com o óbvio - pedir ou justificar a morte de judeus - mas também incluíram “afirmar que a existência de um Estado de Israel é um esforço racista” e “fazer comparações da política israelense contemporânea com a dos nazistas”.


Esta definição não tinha força legal, mas teve uma influência extraordinária. Vinte e cinco estados-membros da União Europeia e o Departamento de Estado dos EUA endossaram ou adotaram a definição da IHRA. Em 2019, o [então] presidente Donald Trump assinou uma ordem executiva que prevê a retenção de fundos federais de faculdades onde os alunos não estiverem protegidos contra o antissemitismo, entendido conforme a definição do IHRA. Em 5 de dezembro desse ano, a Câmara dos Deputados dos EUA aprovou uma resolução não vinculante [sem força de lei] condenando o antissemitismo conforme definido pelo IHRA; ela foi proposta por dois representantes judeus republicanos e teve a oposição de vários democratas judeus proeminentes, inclusive Jerry Nadler, de Nova York.

 

Em 2020, um grupo de acadêmicos propôs uma definição alternativa de antissemitismo, que eles chamaram de Declaração de Jerusalém. Ela define antissemitismo como “discriminação, preconceito, hostilidade ou violência contra judeus como judeus (ou instituições judaicas como judaicas)” e fornece exemplos que ajudam a distinguir declarações e ações anti-Israel de declarações antissemitas. Mas, embora alguns dos principais estudiosos do Holocausto tenham participado da elaboração da declaração, ela mal conseguiu arranhar a influência crescente da definição da IHRA. Em 2021, a Comissão Europeia publicou um manual “para o uso prático” da definição da IHRA, que recomendava, entre outras coisas, o uso desta definição no treinamento de agentes da lei para reconhecer crimes de ódio e a criação do cargo de procurador de estado, coordenador ou comissário para antissemitismo.

 

A Alemanha já havia implementado essa recomendação específica. Em 2018, o país criou o Escritório do Comissário do Governo Federal para a Vida Judaica na Alemanha e a Luta Contra o Antissemitismo, uma vasta burocracia que inclui comissários em nível estadual e local, alguns dos quais trabalham em escritórios de promotores ou delegacias de polícia. Desde então, a Alemanha tem relatado um aumento quase ininterrupto no número de incidentes antissemitas: mais de 2000 em 2019, mais de 3000 em 2021 e, de acordo com um grupo de monitoramento, um número chocante de 994 incidentes no mês seguinte ao ataque do Hamas. Mas as estatísticas misturam o que os alemães chamam de Israelbezogener Antisemitismus (antissemitismo relacionado a Israel, como casos de críticas às políticas do governo israelense) com ataques violentos, tais como uma tentativa de tiroteio em uma sinagoga, em Halle, em 2019, que matou dois transeuntes; tiros disparados contra a casa de um ex-rabino, em Essen, em 2022; e dois coquetéis molotov atirados em uma sinagoga de Berlim neste outono. O número de incidentes violentos permaneceu, de fato, relativamente estável e não aumentou após o ataque do Hamas.

 

Atualmente, existem dezenas de comissários de antissemitismo em toda a Alemanha. Eles não têm uma descrição singular de cargo ou uma estrutura legal para seu trabalho, mas grande parte dele parece consistir em envergonhar publicamente aqueles que eles consideram antissemitas, geralmente por “dessingularizar o Holocausto” ou por criticar Israel. Quase nenhum desses comissários é judeu. E na verdade, a proporção de judeus entre seus alvos é certamente maior. Entre eles está o sociólogo alemão-israelense Moshe Zuckermann, que foi alvo por apoiar o movimento BDS, assim como o fotógrafo judeu sul-africano Adam Broomberg.

 

Em 2019, o Bundestag aprovou uma resolução condenando o BDS como antissemita e recomendando que o financiamento do Estado fosse negado a eventos e instituições ligadas ao BDS. A história desta resolução é reveladora. Uma versão disto foi originalmente apresentada pelo AfD, o partido etnonacionalista e eurocético de extrema-direita, então relativamente novo no parlamento alemão. Os políticos mais influentes rejeitaram a resolução porque ela veio do AfD, mas, aparentemente temerosos de serem vistos como incapazes de combater o antissemitismo, imediatamente apresentaram uma resolução semelhante. A resolução era imbatível, porque associava o BDS à “fase mais terrível da história alemã”. Para o AfD, cujos líderes fizeram declarações abertamente antissemitas e endossaram o renascimento da linguagem nacionalista da era nazista, o fantasma do antissemitismo é um instrumento político perfeito e cinicamente utilizado, sendo tanto uma passagem para a vitrine política principal quanto uma arma que pode ser usada contra imigrantes muçulmanos.

 

O movimento BDS, inspirado no movimento de boicote contra o apartheid na África do Sul, busca usar pressão econômica para garantir direitos iguais aos palestinos em Israel, acabar com a ocupação e promover o retorno dos refugiados palestinos. Muitas pessoas consideram o movimento BDS problemático porque ele não afirma o direito do Estado israelense de existir - e, de fato, alguns apoiadores do BDS imaginam uma destruição total do projeto sionista. Mesmo assim, pode-se argumentar que associar ao Holocausto um movimento de boicote não violento e cujos apoiadores o posicionaram explicitamente como alternativa à luta armada é a própria definição de relativização do Holocausto. Apesar disso, de acordo com a lógica alemã em política de memória [histórica], como o BDS é dirigido contra judeus - embora muitos dos apoiadores do movimento também sejam judeus - ele é antissemita. Também se poderia argumentar que a fusão inerente de judeus com o Estado de Israel é antissemita, apesar de estar em conformidade com a definição de antissemitismo da IHRA. E, dado o envolvimento do AfD e o fato de o padrão da resolução ser usado em grande parte contra judeus e pessoas não brancas, se poderia pensar que essa argumentação ganharia força. Mas esse pensamento estaria errado.

 

A Lei Fundamental da República Federal da Alemanha, ao contrário da Constituição dos EUA, mas como as constituições de muitos outros países europeus, não foi interpretada de modo a fornecer uma garantia absoluta de liberdade de expressão. No entanto, ela promete liberdade de expressão não apenas para a imprensa, mas também para as artes e ciências, pesquisa e ensino. É possível que, se a resolução sobre o BDS se tornasse lei, ela fosse considerada inconstitucional. Mas esta resolução não foi testada dessa forma. Parte do que tornou a resolução particularmente poderosa é a generosidade habitual do Estado alemão: quase todos os museus, exposições, conferências, festivais e outros eventos culturais recebem financiamento do governo federal, estadual ou local. “Isso criou um ambiente macarthista”, disse-me Candice Breitz, a artista. “Sempre que queremos convidar alguém, eles” - ou seja, qualquer agência governamental que esteja financiando um evento – “colocam o nome da pessoa no Google lado a lado com 'BDS', 'Israel', 'apartheid'."

 

Há alguns anos, Breitz, cuja arte lida com questões de raça e identidade, e Michael Rothberg, que ocupa uma cadeira de estudos sobre o Holocausto na Universidade da Califórnia, em Los Angeles, tentaram organizar um simpósio sobre a memória alemã do Holocausto, chamado “We Need to Talk” [precisamos conversar]. Depois de meses de preparativos, eles tiveram o financiamento de Estado cancelado, provavelmente porque o programa incluía um painel que relacionava Auschwitz e o genocídio dos povos Herero e Nama, realizado entre 1904 e 1908 pelos colonizadores alemães no que hoje é a Namíbia. “Algumas das técnicas do Shoah [denominação judaica para o Holocausto] foram desenvolvidas naquela época”, disse Breitz. “Mas não é permitido se falar sobre colonialismo alemão e Shoah ao mesmo tempo, porque isso é uma ‘equiparação’. "

 

A insistência na singularidade do Holocausto e a centralidade do compromisso da Alemanha em lidar com ele são dois lados da mesma moeda: os alemães posicionam o Holocausto como um evento que os alemães devem sempre lembrar e mencionar, mas não precisam temer repetir, porque é diferente de tudo o que aconteceu antes ou acontecerá. A historiadora alemã Stefanie Schüler-Springorum, que dirige o Centro de Pesquisa sobre Antissemitismo, em Berlim, argumentou que a Alemanha unificada transformou o acerto de contas com o Holocausto em sua ideia nacional e, como resultado, “qualquer tentativa de avançar nossa compreensão do evento histórico em si, por meio de comparações com outros crimes alemães ou outros genocídios, pode [ser] e está sendo percebida como um ataque à própria fundação desse novo Estado-nação". Talvez esse seja o significado de "Nunca Mais É Agora".

 

Alguns dos grandes pensadores judeus que sobreviveram ao Holocausto passaram o resto de suas vidas tentando dizer ao mundo que aquele horror, embora singularmente letal, não deveria ser visto como aberração. O fato de o Holocausto ter acontecido significava que ele era possível - e continua sendo possível. O sociólogo e filósofo Zygmunt Bauman argumentou que a natureza maciça, sistemática e eficiente do Holocausto foi uma funcionalidade da modernidade - que, embora não tenha sido predeterminada de forma alguma, se alinhou a outras invenções do século XX. Theodor Adorno estudou o que torna as pessoas inclinadas a seguir líderes autoritários e buscou um princípio moral que impedisse outro Auschwitz.

 

Em 1948, Hannah Arendt escreveu uma carta aberta que começava assim: “Entre os fenômenos políticos mais perturbadores de nossos tempos está o surgimento, no recém-criado Estado de Israel, do ‘Partido da Liberdade’ (Tnuat Haherut), um partido político muito semelhante em sua organização, métodos, filosofia política e apelo social aos partidos nazista e fascista”. Apenas três anos após o Holocausto, Arendt estava comparando um partido judeu israelense ao Partido Nazista, um ato que hoje seria uma clara violação da definição de antissemitismo da IHRA. Arendt baseou sua comparação em um ataque realizado em parte pelo Irgun, um predecessor paramilitar do Partido da Liberdade, na aldeia árabe de Deir Yassin, que não estava envolvida na guerra e não era um objetivo militar. Os agressores “mataram a maioria de seus habitantes - 240 homens, mulheres e crianças - e mantiveram alguns deles vivos para exibi-los como prisioneiros pelas ruas de Jerusalém”.

 

O motivo para esta carta de Arendt foi uma visita planejada aos Estados Unidos pelo líder daquele partido, Menachem Begin. Albert Einstein, outro judeu alemão que fugiu dos nazistas, também assinou esta carta. Trinta anos depois, Begin tornou-se primeiro-ministro de Israel. Mais meio século depois, em Berlim, a filósofa Susan Neiman, que lidera um instituto de pesquisa que leva o nome de Einstein, falou na abertura de uma conferência chamada “Hijacking Memory: The Holocaust and the New Right" [sequestrando a memória: o holocausto e a nova direita]. Ela sugeriu que poderia sofrer repercussões por desafiar as maneiras pelas quais a Alemanha agora usa sua cultura da memória. Neiman é cidadã israelense e pesquisadora da memória e da moral. Um de seus livros chama-se “Learning from the Germans: Race and the Memory of Evil” [aprendendo com os alemães: raça e a memória da maldade]. Nos últimos dois anos, disse Neiman, a cultura da memória “enlouqueceu”.

 

A resolução anti-BDS da Alemanha, por exemplo, teve um efeito claramente assustador na esfera cultural do país. A cidade de Aachen retirou um prêmio de 10 mil euros que havia concedido ao artista libanês-americano Walid Raad; a cidade de Dortmund e o júri do Prêmio Nelly Sachs, de 15 mil euros, também rescindiram a honraria que haviam concedido à escritora britânico-paquistanesa Kamila Shamsie. O filósofo político camaronês Achille Mbembe teve seu convite para um grande festival questionado depois que o comissário federal de antissemitismo o acusou de apoiar o BDS e de “relativizar o Holocausto”. (Mbembe disse que não está ligado ao movimento de boicote; o próprio festival foi cancelado por causa da Covid). O diretor do Museu Judaico de Berlim, Peter Schäfer, renunciou em 2019 após ser acusado de apoiar o BDS - ele, de fato, não apoiava o movimento de boicote, mas o perfil do museu no Twitter havia publicado um link para um artigo de jornal que incluía críticas à resolução. O gabinete de Benjamin Netanyahu também pediu a Merkel que cortasse o financiamento do museu porque, na opinião do primeiro-ministro israelense, sua exposição sobre Jerusalém dava demasiada atenção aos muçulmanos da cidade. (A resolução BDS da Alemanha pode ser única em seu impacto, mas não em seu conteúdo: a maioria dos Estados dos EUA agora têm leis em vigor que equiparam o boicote ao antissemitismo e retira financiamento estatal de pessoas e instituições que apoiem o boicote).

 

Depois que o simpósio “We Need to Talk” [precisamos conversar] foi cancelado, Breitz e Rothberg se reagruparam e apresentaram uma proposta para um simpósio chamado “We Still Need to Talk” [seguimos precisando conversar]. A lista de palestrantes estava totalmente limpa. Uma entidade governamental avaliou todos e concordou em financiar o encontro. O evento foi agendado para o início de dezembro. Então, o Hamas atacou Israel. “Sabíamos que, depois disso, todos os políticos alemães veriam como extremamente arriscado estar ligado a um evento que tivesse palestrantes palestinos ou a palavra ‘apartheid’”, disse Breitz. Em 17 de outubro, Breitz soube que o financiamento havia sido cancelado. Enquanto isso, em toda a Alemanha, a polícia estava reprimindo manifestações que pediam cessar-fogo em Gaza ou manifestavam apoio aos palestinos. Em vez de um simpósio, Breitz e vários outros organizaram um protesto. Eles o chamaram de “We Still Still Still Still Need to Talk” [seguimos precisando muito, muito, muito conversar]. Cerca de uma hora depois do início da reunião, a polícia passou discretamente pela multidão para confiscar um pôster de papelão que dizia "Do Rio ao Mar, Exigimos Igualdade". A pessoa que havia trazido o cartaz era uma mulher judia israelense.

 

Desde então, a proposta “Cumprindo uma responsabilidade histórica” está parada no comitê. Ainda assim, a batalha performática contra o antissemitismo continuou a se intensificar. Em novembro, o planejamento da Documenta, uma das mostras mais importantes do mundo da arte, foi desestruturado depois que o jornal Süddeutsche Zeitung desenterrou uma petição que um membro do comitê de organização artística, Ranjit Hoskote, havia assinado em 2019. A petição, escrita para protestar contra um evento planejado sobre sionismo e Hindutva [nacionalismo indiano] na cidade natal de Hoskote, Mumbai, que denunciava o sionismo como “uma ideologia racista que exige um estado colonial de colonização e apartheid, onde não judeus têm direitos desiguais e, na prática, tem como premissa a limpeza étnica de palestinos”. O Süddeutsche Zeitung noticiou o fato sob o título “Antissemitismo”. Hoskote renunciou e o restante do comitê fez o mesmo. Uma semana depois, Breitz leu em um jornal que um museu em Saarland havia cancelado uma exposição sua, planejada para 2024, “em vista da cobertura da mídia sobre a artista em relação às suas declarações controversas no contexto da guerra de agressão do Hamas contra o Estado de Israel”.

 

Em novembro deste ano, saí de Berlim para viajar a Kiev, atravessando, de trem, a Polônia e depois a Ucrânia. Esta é uma região melhor que qualquer outra para dizer algumas coisas sobre minha relação com a história judaica dessas terras. Muitos judeus americanos vão à Polônia para visitar o pouco que restou dos antigos bairros judeus, para comer alimentos reconstruídos de acordo com as receitas deixadas por famílias há muito extintas e para fazer passeios pela história judaica, guetos judeus e campos de concentração nazistas. Estou mais próxima dessa história. Cresci na União Soviética na década de 1970, sob a sombra sempre presente do Holocausto, porque apenas uma parte da minha família havia sobrevivido a ele e porque os censores soviéticos suprimiam qualquer menção pública a ele. Quando, por volta dos nove anos de idade, fiquei sabendo que alguns criminosos de guerra nazistas ainda estavam soltos, parei de dormir. Imaginava um deles entrando pela varanda do nosso quinto andar para me pegar.


Durante os verões, nossa prima Anna e seus filhos vinham de Varsóvia. Seus pais haviam decidido se matar depois que o Gueto de Varsóvia foi incendiado. O pai de Anna se jogou na frente de um trem. A mãe de Anna amarrou Anna, então com três anos, à cintura com um xale e pulou em um rio. Elas foram retiradas da água por um polonês e sobreviveram à guerra escondidas no campo. Eu conhecia a história, mas não tinha permissão para contá-la. Anna já era adulta quando soube que era uma sobrevivente do Holocausto e esperou para contar isso aos seus filhos, que tinham mais ou menos a minha idade. A primeira vez que fui à Polônia, na década de 1990, foi para pesquisar o destino do meu bisavô, que passou quase três anos no Gueto de Białystok antes de ser morto em Majdanek.

 

As guerras pela memória do Holocausto na Polônia ocorreram em paralelo com as da Alemanha. As ideias que estão sendo combatidas nos dois países são diferentes, mas uma característica consistente comum é o envolvimento de políticos de direita em conjunto com o Estado de Israel. Assim como na Alemanha, as décadas de 1990 e 2000 viram esforços ambiciosos de reestabelecimento da memória, tanto nacionais quanto locais, que romperam o silêncio dos anos soviéticos. Os poloneses construíram museus e monumentos para homenagear os judeus mortos no Holocausto - que fez metade de suas vítimas na Polônia ocupada pelos nazistas - e a cultura judaica que se perdeu com eles. Então veio a reação. Ela coincidiu com a ascensão ao poder do Partido da Lei e da Justiça, de direita e iliberal [democraturial], em 2015. Os poloneses agora queriam uma versão da história na qual eles fossem vítimas da ocupação nazista ao lado dos judeus, que eles [alegadamente] tentaram proteger dos nazistas.

 

Isso não foi verdade: casos de poloneses que arriscaram suas vidas para salvar judeus dos alemães, como no caso da minha prima Anna, eram extremamente raros, enquanto o oposto - comunidades inteiras ou estruturas do estado polonês pré-ocupação, como a polícia ou as prefeituras, que executavam o assassinato em massa de judeus - era o comum. Mas os historiadores que estudaram o papel dos poloneses no Holocausto foram atacados. O historiador de Princeton, nascido na Polônia, Jan Tomasz Gross, foi interrogado e ameaçado de processo por escrever que os poloneses mataram mais judeus poloneses do que os alemães. As autoridades polonesas o perseguiram mesmo depois que ele se aposentou. O governo expulsou de seu cargo Dariusz Stola, diretor do POLIN, o inovador museu de história judaica polonesa de Varsóvia. Os historiadores Jan Grabowski e Barbara Engelking foram levados ao tribunal por escreverem que o prefeito de um vilarejo polonês havia colaborado com o Holocausto.


Quando escrevi sobre o caso de Grabowski e Engleking, recebi algumas das ameaças de morte mais assustadoras de minha vida. (Recebi muitas ameaças de morte; a maioria é esquecível.) Uma delas, enviada para um endereço de e-mail profissional meu, dizia: “Se você continuar escrevendo mentiras sobre a Polônia e os poloneses, vou atirar estas balas em seu corpo. Veja o anexo! Cinco delas em cada rótula, assim você não voltará a andar. Mas se continuar a disseminar seu ódio aos judeus, eu atirarei as próximas 5 balas na sua xoxota. O terceiro passo você não perceberá. Mas não se preocupe, não vou visitá-la na próxima semana ou daqui a oito semanas, voltarei quando você esquecer este e-mail, talvez daqui a cinco anos. Você está na minha lista..." O anexo era uma foto de duas balas brilhantes na palma de uma mão. O Museu Estatal de Auschwitz-Birkenau, dirigido por um nomeado pelo governo, publicou no Twitter uma condenação do meu artigo, assim como o perfil do Congresso Judaico Mundial. Alguns meses depois, um convite para falar em uma universidade foi retirado porque, segundo a universidade informou ao meu agente de palestras, havia surgido a possibilidade de eu ser antissemita.

 

Durante as guerras polonesas pela memória do Holocausto, Israel manteve relações amistosas com a Polônia. Em 2018, Netanyahu e o primeiro-ministro polonês, Mateusz Morawiecki, emitiram uma declaração conjunta contra “ações que visam culpar a Polônia ou a nação polonesa como um todo pelas atrocidades cometidas pelos nazistas e seus colaboradores de diferentes nações”. A declaração afirmava, falsamente, que “as estruturas do estado clandestino polonês supervisionadas pelo governo polonês no exílio criaram um mecanismo de ajuda e apoio sistemático ao povo judeu”. Netanyahu estava construindo alianças com os governos iliberais [democraturas] de países da Europa Central, como Polônia e Hungria, em parte para impedir que um consenso contra a ocupação [de territórios palestinos] se solidificasse na União Europeia. Para isso, ele estava disposto até a mentir sobre o Holocausto.


Todos os anos, dezenas de milhares de adolescentes israelenses viajam para o museu de Auschwitz antes de suas formaturas de ensino médio (embora no ano passado as viagens tenham sido canceladas devido a questões de segurança e à crescente insistência do governo polonês para que o envolvimento dos poloneses no Holocausto seja apagado da história). É uma viagem poderosa e formadora de identidade, que ocorre apenas um ou dois anos antes de os jovens israelenses se alistarem nas forças armadas. Noam Chayut, fundador do Breaking the Silence [rompendo o silêncio], um grupo de defesa contra a ocupação [da Palestina] em Israel, escreveu sobre sua própria viagem de conclusão do ensino médio, que ocorreu no final dos anos 1990: “Agora, na Polônia, como um adolescente do ensino médio, comecei a ter o sentimento de pertencimento, amor próprio, poder e orgulho, e o desejo de contribuir, de viver e ser forte, tão forte que ninguém jamais tentaria me machucar”.

 

Chayut levou esse sentimento para a IDF [Forças de Defesa de Israel], que o enviou para a Cisjordânia ocupada. Um dia, ele estava colocando avisos de confisco de propriedades. Um grupo de crianças estava brincando nas proximidades. Chayut dirigiu a uma garotinha o que considerava ser um sorriso gentil e não ameaçador. O resto das crianças saiu correndo, mas a menina ficou paralisada, aterrorizada, até que também fugiu. Mais tarde, quando Chayut publicou um livro sobre a transformação que esse encontro provocou, ele escreveu que não tinha certeza do motivo pelo qual foi essa menina: "Afinal, havia também o garoto algemado no jipe e a garota cuja casa de família havíamos invadido tarde da noite para retirar sua mãe e sua tia. E havia muitas crianças, centenas delas, gritando e chorando enquanto vasculhávamos seus quartos e seus pertences. E havia a criança de Jenin, cuja parede foi atingida por uma carga explosiva que abriu um buraco a apenas alguns centímetros de sua cabeça. Milagrosamente, ele não se feriu, mas tenho certeza de que sua audição e sua mente ficaram muito prejudicadas." Mas nos olhos daquela menina, naquele dia, Chayut viu um reflexo do mal aniquilador, o tipo de mal que ele havia aprendido que existia, mas somente entre 1933 e 1945, e somente onde os nazistas governavam. Chayut chamou seu livro de "A garota que roubou meu Holocausto".

 

Peguei o trem da fronteira polonesa para Kiev. Cerca de 34 mil judeus foram fuzilados em Babyn Yar, uma ravina gigante nos arredores da cidade, em apenas 36 horas em setembro de 1941. Dezenas de milhares de outras pessoas morreram ali antes do fim da guerra. Isso configurou o que hoje é conhecido como o “Holocausto com Balas”. Muitos dos países em que esses massacres ocorreram – os países Bálticos, Belarus, Ucrânia - foram recolonizados pela União Soviética após a Segunda Guerra Mundial. Dissidentes e ativistas culturais judeus arriscaram sua liberdade para manter a memória dessas tragédias, para coletar testemunhos e nomes e, quando possível, para limpar e proteger os próprios locais. Após a queda da União Soviética, os projetos de memorialização acompanharam os esforços de adesão à União Europeia. “O reconhecimento do Holocausto é o nosso atual bilhete de entrada [à condição de] europeu”, escreveu o historiador Tony Judt em seu livro de 2005, "Postwar".

 

Na floresta de Rumbula, nos arredores de Riga, por exemplo, onde cerca de 25 mil judeus foram assassinados em 1941, um memorial foi inaugurado em 2002, dois anos antes de a Letônia ser admitida na UE. Um esforço sério para relembrar Babyn Yar condensou-se após a revolução de 2014, que colocou a Ucrânia em um caminho de aspiração à UE. Quando a Rússia invadiu a Ucrânia, em fevereiro de 2022, várias estruturas menores haviam sido concluídas e planos ambiciosos para um complexo maior de museus estavam em andamento. Com a invasão, a construção foi interrompida. Uma semana após o início da guerra em grande escala, um míssil russo atingiu diretamente o complexo do memorial, matando pelo menos quatro pessoas. Desde então, algumas das pessoas associadas ao projeto se reorganizaram como uma equipe de investigadores de crimes de guerra.

 

O presidente ucraniano, Volodymyr Zelensky, fez uma campanha seriamente dedicada a ganhar o apoio israelense à causa da Ucrânia. Em março de 2022, ele fez um discurso no Knesset [parlamento israelense], no qual não enfatizou sua própria herança judaica, mas concentrou-se na inextricável conexão histórica entre judeus e ucranianos. Ele traçou paralelos inequívocos entre o regime de Putin e o Partido Nazista. Ele até afirmou que há 80 anos os ucranianos resgataram judeus. (Assim como no caso da Polônia, qualquer alegação de que uma tal ajuda foi generalizada é falsa.) Mas o que funcionou para o governo de direita da Polônia não funcionou para o presidente pró-Europa da Ucrânia. Israel não deu à Ucrânia a ajuda que ela implorou em sua guerra contra a Rússia, um país que apoia abertamente o Hamas e o Hezbollah.

 

Ainda assim, tanto antes quanto depois do ataque de 7 de outubro, a frase que ouvi na Ucrânia, possivelmente mais do que qualquer outra, foi "Precisamos ser como Israel". Políticos, jornalistas, intelectuais e ucranianos comuns se identificam com a história que Israel conta sobre si mesmo, a de uma pequena, mas poderosa ilha de democracia que se mantém forte contra os inimigos que a cercam. Alguns intelectuais de esquerda ucranianos argumentaram que a Ucrânia, que está travando uma guerra anticolonial contra uma potência ocupante, deveria identificar seu reflexo na Palestina, não em Israel. Essas vozes são marginais e, na maioria das vezes, pertencem a jovens ucranianos que estão estudando ou estudaram no exterior. Após o ataque do Hamas, Zelensky queria correr para Israel como uma demonstração de apoio e união entre Israel e a Ucrânia. As autoridades israelenses parecem ter outras posições - a visita não aconteceu.

 

Enquanto a Ucrânia vem tentando, sem sucesso, fazer com que Israel reconheça que a invasão russa se assemelha à agressão genocida da Alemanha nazista, Moscou construiu um universo de propaganda retratando o governo de Zelensky, os militares ucranianos e o povo ucraniano como nazistas. A Segunda Guerra Mundial é o evento central no mito histórico da Rússia. Durante o reinado de Vladimir Putin, enquanto as últimas pessoas que viveram os anos da guerra estão morrendo, os eventos comemorativos se transformaram em carnavais que celebram a vitimização russa. A URSS perdeu pelo menos 27 milhões de pessoas nessa guerra e um número desproporcional delas eram ucranianas. A União Soviética e a Rússia lutaram em guerras quase que continuamente desde 1945, mas a palavra "guerra" ainda é sinônimo da Segunda Guerra Mundial e a palavra "inimigo" é usada de forma intercambiável para "fascista" e "nazista". Isso tornou muito mais fácil para Putin, ao declarar uma nova guerra, classificar os ucranianos como nazistas.


Netanyahu comparou os assassinatos do Hamas ocorridos no festival de música ao Holocausto com Balas. Essa comparação, captada e reprisada por líderes mundiais, incluindo o presidente Biden, serve para reforçar o argumento de Israel para infligir punição coletiva aos residentes de Gaza. Da mesma forma, quando Putin diz "nazista" ou "fascista", ele quer dizer que o governo ucraniano é tão perigoso que a Rússia tem justificativa para bombardear e cercar as cidades ucranianas e matar civis ucranianos. Há diferenças significativas, é claro: as alegações da Rússia de que a Ucrânia a atacou primeiro e suas representações do governo ucraniano como fascista são falsas; o Hamas, por outro lado, é uma potência tirânica que atacou Israel e cometeu atrocidades que ainda não podemos compreender totalmente. Mas será que essas diferenças importam quando o caso que está sendo defendido é o de matar crianças?

 

Nas primeiras semanas da invasão em grande escala da Rússia na Ucrânia, quando suas tropas estavam ocupando os subúrbios ocidentais de Kiev, o diretor do museu da Segunda Guerra Mundial de Kiev, Yurii Savchuk, estava morando no museu e repensando a exposição principal. Um dia depois que o exército ucraniano expulsou os russos da região de Kiev, ele se reuniu com o comandante-em-chefe das forças armadas ucranianas, Valerii Zaluzhnyi, e obteve permissão para começar a coletar artefatos. Savchuk e sua equipe foram a Bucha, Irpin e outras vilas e cidades que tinham acabado de ser "desocupadas", como os ucranianos costumam dizer, e entrevistaram pessoas que ainda não tinham contado suas histórias. "Isso foi antes das exumações e dos enterros", disse-me Savchuk. "Vimos a verdadeira face da guerra, com todas as suas emoções. O medo, o terror, estava na atmosfera, e nós os absorvemos com o ar."

 

Em maio de 2022, o museu abriu uma nova exposição, intitulada "Ucrânia - Crucificação". Ela começa com uma exibição de botas de soldados russos, que a equipe de Savchuk havia coletado. É uma inversão estranha: tanto o museu de Auschwitz quanto o museu do Holocausto em Washington, D.C., exibiram centenas ou milhares de sapatos que pertenceram a vítimas do Holocausto. Eles transmitem a escala da perda, mesmo que mostrem apenas uma pequena fração dela. A exposição em Kiev mostra a escala da ameaça. As botas estão dispostas no chão do museu no padrão de uma estrela de cinco pontas, o símbolo do Exército Vermelho que se tornou tão sinistro na Ucrânia quanto a suástica. Em setembro, Kiev removeu as estrelas de cinco pontas de um monumento à Segunda Guerra Mundial no que costumava ser chamado de Praça da Vitória - o nome foi mudado porque a própria palavra "Vitória" conota a comemoração da Rússia naquilo que esta ainda chama de Grande Guerra Patriótica. A cidade também alterou as datas no monumento, de "1941-1945" - os anos da guerra entre a União Soviética e a Alemanha - para "1939-1945". Corrige-se a memória, um monumento de cada vez.

 

Em 1954, um tribunal israelense julgou um caso de difamação envolvendo um judeu húngaro chamado Israel Kastner. Uma década antes, quando a Alemanha ocupou a Hungria e, tardiamente, correu para implementar o assassinato em massa dos judeus locais, Kastner, como líder da comunidade judaica, entrou em negociações com o próprio Adolf Eichmann. Kastner propôs comprar a vida dos judeus da Hungria com dez mil caminhões. Quando isso não deu certo, ele negociou para salvar 1685 pessoas, transportando-as de trem fretado para a Suíça. Centenas de milhares de outros judeus húngaros foram embarcados em trens para campos de extermínio. Um sobrevivente judeu húngaro acusou publicamente Kastner de ter colaborado com os alemães. Kastner processou-o por difamação e, de fato, acabou sendo julgado. O juiz concluiu que Kastner havia "vendido sua alma ao diabo".


A acusação de colaboração contra Kastner baseava-se na alegação de que ele não havia contado às pessoas que elas estavam indo para a morte. Seus acusadores argumentaram que, se ele tivesse avisado os deportados, eles teriam se rebelado, e não ido para os campos de extermínio como ovelhas para o abate. O julgamento foi entendido como o início de um impasse discursivo, no qual a direita israelense defende a violência preventiva e vê a esquerda como deliberadamente indefesa. Na época do julgamento, Kastner era um político de esquerda; seu acusador era um ativista de direita.

 

Sete anos depois, o juiz que havia presidido o julgamento por difamação de Kastner foi um dos três juízes no julgamento de Adolf Eichmann. Ali estava o próprio demônio. A acusação argumentou que Eichmann representava a própria reiteração da eterna ameaça aos judeus. O julgamento ajudou a solidificar a narrativa de que, para evitar a aniquilação, os judeus deveriam estar preparados para usar a força de forma preventiva. Arendt, ao relatar o julgamento, não quis saber disso. Sua expressão "a banalidade do mal" suscitou talvez as acusações originais, reajustadas contra uma judia, no sentido de trivializar o Holocausto. Ela não estava [trivializando]. Mas ela viu que Eichmann não era um demônio, que talvez o demônio não existisse. Ela argumentou que não existia o mal radical, que o mal era sempre comum, mesmo quando era extremo - algo "nascido na sarjeta", como ela disse mais tarde, algo de "absoluta superficialidade".

 

Arendt também discordou da história da acusação, de que os judeus eram vítimas de, como ela disse, "um princípio histórico que se estende do Faraó a Hamã - a vítima de um princípio metafísico". [O nome Hamã aparece no Corão e na Bíblia, no livro de Ester, onde Hamã é conselheiro de Assuero, rei da Pérsia e inimigo dos judeus.] Essa história, enraizada na lenda bíblica de Amaleque, um povo do deserto de Negev que lutou repetidamente contra os antigos israelitas, sustenta que cada geração de judeus enfrenta seu próprio Amaleque. Aprendi essa história quando era adolescente; foi a primeira lição de Torá que recebi, ensinada por um rabino que reunia as crianças em um subúrbio de Roma, onde refugiados judeus da União Soviética viviam enquanto aguardavam seus documentos para entrar nos Estados Unidos, Canadá ou Austrália. Nessa história, conforme contada pelo promotor no julgamento de Eichmann, o Holocausto é um evento predeterminado, parte da história judaica - e somente da história judaica. Os judeus, nessa versão, sempre tiveram um medo bem justificado de aniquilação. De fato, eles só podem sobreviver se agirem como se a aniquilação fosse iminente.

 

Quando conheci a lenda de Amaleque, ela fazia todo o sentido para mim. Ela descreveu meu conhecimento do mundo; ajudou-me a conectar minha experiência de ser provocada e espancada com as advertências de minha bisavó, de que usar em público expressões domésticas em iídiche era perigoso, até a injustiça insondável de meu avô, bisavô e muitos outros parentes terem sido mortos antes de eu nascer. Eu tinha 14 anos e era solitária. Eu sabia que eu e minha família éramos vítimas, e a lenda de Amaleque impregnou meu senso de vítima com significado e um senso de comunidade.

 

Netanyahu tem brandido [a lenda de] Amaleque na esteira do ataque do Hamas. A lógica dessa lenda, da forma como ele a utiliza - de que os judeus ocupam um lugar singular na história e têm direito exclusivo à condição de vítima -, reforçou a burocracia do antissemitismo na Alemanha e a aliança profana entre Israel e a extrema direita europeia. Mas nenhuma nação é sempre vítima ou sempre agressora. Assim como grande parte da reivindicação de impunidade de Israel está no status de vítima perpétua dos judeus, muitos dos críticos do país tentaram justificar o ato de terrorismo do Hamas como uma resposta previsível à opressão de Israel sobre os palestinos. Por outro lado, aos olhos dos defensores de Israel, os palestinos em Gaza não podem ser vítimas porque o Hamas atacou Israel primeiro. A luta por uma reivindicação legítima de vitimização dura para sempre.

 

Nos últimos 17 anos, Gaza tem sido um complexo hiperdensamente povoado, empobrecido e murado, onde apenas uma pequena fração da população tem o direito de sair, mesmo que por um curto período de tempo - em outras palavras, um gueto. Não como o gueto judeu em Veneza ou um gueto no centro da cidade nos Estados Unidos, mas como um gueto judeu em um país do Leste Europeu ocupado pela Alemanha nazista.

 

Nos dois meses que se passaram desde que o Hamas atacou Israel, todos os habitantes de Gaza sofreram com o ataque quase ininterrupto das forças israelenses. Milhares de pessoas morreram. Em média, uma criança é morta em Gaza a cada dez minutos. As bombas israelenses atingiram hospitais, maternidades e ambulâncias. Oito em cada dez habitantes de Gaza estão agora desabrigados, mudando de um lugar para outro, sem nunca conseguir chegar a um lugar seguro.

 

O termo "prisão a céu aberto" parece ter sido cunhado em 2010 por David Cameron, o ministro das Relações Exteriores britânico que na época era primeiro-ministro. Muitas organizações de direitos humanos que documentam as condições em Gaza adotaram essa descrição. Mas, como nos guetos judeus da Europa ocupada, não há guardas de prisão - Gaza é policiada não por ocupantes, mas por uma força local. Presumivelmente, o termo "gueto", mais adequado, teria sido criticado por comparar a situação dos habitantes de Gaza sitiados com a de judeus guetificados. O termo também nos daria aproximação de significado para descrever o que está acontecendo em Gaza agora. O gueto está sendo liquidado.

 

Os nazistas alegaram que os guetos eram necessários para proteger os não-judeus de doenças transmitidas pelos judeus. Israel alegou que o isolamento de Gaza, assim como o muro na Cisjordânia, é necessário para proteger os israelenses de ataques terroristas realizados por palestinos. A alegação nazista não tinha base na realidade, enquanto a alegação israelense decorre de atos de violência reais e repetidos. Essas são diferenças essenciais. No entanto, ambas as alegações propõem que uma autoridade ocupante pode optar por isolar, imergir - e, agora, colocar em risco mortal - toda uma população em nome da proteção de sua própria população.

 

Desde os primeiros dias da fundação de Israel, a comparação entre palestinos refugiados e judeus refugiados apresentou-se por si mesma, sendo contudo apenas refutada. Em 1948, ano em que o Estado de Israel foi criado, um artigo do jornal israelense Maariv descreveu as condições terríveis - "idosos tão fracos que estavam à beira da morte"; "um menino com duas pernas paralisadas"; "outro menino com as mãos decepadas" - em que os palestinos, em sua maioria mulheres e crianças, saíram do vilarejo de Tantura depois que as tropas israelenses o ocuparam: "Uma mulher carregava seu filho em um braço e com a outra mão segurava sua mãe idosa. Esta última não conseguia manter o ritmo, gritava e implorava à filha que diminuísse a velocidade, mas a filha não consentia. Finalmente, a senhora idosa caiu na estrada e não conseguia se mover. A filha arrancou os cabelos... porque ela não chegaria a tempo. E pior do que isso era a associação com as [lembranças de] mães e avós judias que ficavam desse jeito nas estradas, à mercê de assassinos". O jornalista se conteve. "Obviamente, não há espaço para tal comparação", escreveu ele. "Esse destino - elas atrairam para si mesmas."

 

Os judeus pegaram em armas em 1948 para reivindicar a terra que lhes foi oferecida por uma decisão das Nações Unidas de dividir o que era a Palestina controlada pelos britânicos. Os palestinos, apoiados pelos estados árabes vizinhos, não aceitaram a divisão e a declaração de independência de Israel. Egito, Síria, Iraque, Líbano e Transjordânia invadiram o protoestado israelense, dando início ao que Israel hoje chama de Guerra de Independência. Centenas de milhares de palestinos fugiram dos combates. Os que não fugiram foram expulsos de suas aldeias pelas forças israelenses. A maioria deles nunca mais conseguiu voltar. Os palestinos se lembram de 1948 como a Nakba, uma palavra que significa "catástrofe" em árabe, assim como Shoah significa "catástrofe" em hebraico. O fato de a comparação ser inevitável levou muitos israelenses a afirmar que, ao contrário dos judeus, os palestinos atraíram sua catástrofe por si mesmos.

 

No dia em que cheguei a Kiev, alguém me entregou um livro grosso. Era o primeiro estudo acadêmico de Stepan Bandera a ser publicado na Ucrânia. Bandera é um herói ucraniano: ele lutou contra o regime soviético; dezenas de monumentos em sua homenagem surgiram desde o colapso da URSS. Ele foi parar na Alemanha após a Segunda Guerra Mundial, liderou um movimento partidário do exílio e morreu após ser envenenado por um agente do KGB, em 1959. Bandera também era um fascista convicto, um ideólogo que queria construir um regime totalitário. Esses fatos são detalhados no livro, que vendeu cerca de 1.200 exemplares. (Muitas livrarias se recusaram a vendê-lo.) A Rússia deleita-se em usar o culto a Bandera na Ucrânia como prova de que a Ucrânia é um estado nazista. Os ucranianos respondem, em sua maioria, apagando o legado de Bandera. É sempre muito difícil para as pessoas entenderem a ideia de que alguém pode ter sido o inimigo de seu inimigo e, ainda assim, não ser uma força benevolente. Uma vítima e também um agressor. Ou vice-versa.

 

Masha Gessen começou a colaborar com a revista The New Yorker em 2014 e tornou-se redatora da equipe em 2017. Gessen é autora de onze livros, incluindo "Surviving Autocracy" [Sobrevivendo à autocracia] e "The Future Is History: How Totalitarianism Reclaimed Russia" [O futuro é história: Como o Totalitarismo Recuperou a Rússia], que ganhou o National Book Award [dos EUA] em 2017. Eles tratam de Rússia, Ucrânia, autocracia, direitos LGBT, Vladimir Putin e Donald Trump, entre outros assuntos, para o The New York Review of Books e o Times. Em atividade paralela, [Gessen] trabalhou com jornalismo científico, escrevendo sobre AIDS, genética médica e matemática; notoriamente, foi demitida do cargo de editora da revista russa de ciência popular Vokrug sveta por se recusar a enviar um repórter para observar Putin voando de asa delta sob gruas siberianas. É escritora ilustre residente no Bard College e recebeu uma bolsa de estudos Guggenheim, uma bolsa de estudos Andrew Carnegie, uma bolsa de estudos Nieman, o prêmio John Chancellor, o prêmio Hitchens e o prêmio Overseas Press Club de melhor comentarista. Depois de mais de 20 anos como jornalista e editora em Moscou, Gessen vive em Nova York desde 2013.

Novo Post
Posts Recentes
Arquivo
Busca via Tags
bottom of page