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Quando o Reich virou Ranicki

A fabulosa trajetória de um judeu sem diploma, sobrevivente do Gueto de Varsóvia, que devolveu aos alemães seu cânone literário, ensinou várias gerações a ler ficção e se tornou o papa das letras na nação de Goethe

Ele, que os alemães um dia expulsaram de seu meio e tentaram assassinar, teve a grandeza de abrir-lhes novos caminhos de volta à própria cultura. Nem mesmo o ódio homicida dos nazistas conseguiu tirar-lhe o amor pelos poetas alemães. A primeira frase é do presidente da Alemanha, Joachim Gauck, e a segunda da chanceler, Angela Merkel, ambas dirigidas a Marcel Reich-Ranicki, falecido no dia 18 de setembro. Irônica como só a História sabe ser, foi um judeu sem diploma, sobrevivente do Gueto de Varsóvia, quem recuperou o cânone literário alemão, rejeitado pela Europa a partir dos governos de Hitler, e rehabilitou mestres esquecidos pelos próprios alemães por quase três gerações, como os também judeus Heinrich Heine e Kurt Tucholsky. Como disse o jornal Frankfurter Allgemeine Zeitung: Não é verdade que ninguém é insubstituível: na morte, alguns tornam-se uma ausência permanente. Marcel Reich-Ranicki é um desses.

Em seus 93 anos, assinou 23 livros sobre literatura e outros 16 como editor, vendeu alguns milhões de exemplares com seus Kanons (cânones: de romance, contos, drama, poesia e ensaios) e cerca de milhão e meio com sua autobiografia, Mein Leben (Minha Vida, que virou elogiado longa-metragem). Foi objeto de oito filmes, nove títulos de doutor honoris causa, 29 grandes prêmios culturais e deu seu nome a cátedra de literatura alemã na Universidade de Tel Aviv. Por mais de 50 anos figura central não apenas na crítica literária da Alemanha, mas também do desenvolvimento literário do país, Ranicki levou a análise de livros não só às páginas de grandes jornais, revistas e às universidades de diversas metrópoles, mas também ao horário nobre da televisão.

Nascido Marcel Reich em 2 de junho de 1920 em Włocławek (Polônia), terceiro filho de um industrial polonês, amante da música (e logo falido), e de uma alemã cultivada e orgulhosa da cultura de seu país, aos 9 anos foi enviado a Berlim para ter um futuro melhor junto a parentes abastados. A ditadura nazista o impediu de ingressar na universidade por ser judeu e também por isso o deportou para Varsóvia, em outubro de 1938. Quando a Alemanha invadiu a Polônia, um ano depois, foi trancado com sua família no Gueto de Varsóvia e ali designado tradutor do chamado “Conselho Judeu”, que representava internamente os cerca de 450 mil encarcerados junto ao comando nazista. Foi o que o manteve vivo até a última fase, quando gueto estava reduzido a 25 mil sobreviventes.

Conheceu sua esposa (Teófila, que o acompanharia até falecer, em 2011) em 21 de janeiro de 1940, quando sua mãe mandou-lhe consolar a vizinha, cujo pai recém havia se enforcado. Casaram-se às pressas dois anos depois, quando os nazistas decidiram transferir para os campos de concentração todos que não estivessem diretamente ligados ao “conselho” – sua família foi então enviada para a morte, os pais em Treblinka e seu irmão em Lublin (a irmã fugira bem antes para Londres e viveu até 2006). Em janeiro de 1943, durante as últimas evacuações do gueto rumo aos campos de concentração, o jovem casal aproveitou um descuido da guarda para esconder-se num dos muitos prédios já vazios. A fuga definitiva aconteceu em fevereiro, quando uma organização clandestina conseguiu enviar-lhes dinheiro para subornar a guarda.

Ainda demoraria 16 meses para o exército soviético libertar a Polônia e esse tempo o casal passou escondido no porão da família Gawin, nos arrabaldes da capital polonesa. Para manter o ânimo de seus protetores, sempre e cada vez mais temerosos das muitas revistas nazistas, Ranicki narrava de cor grandes histórias da literatura, do teatro e da ópera. Ele mesmo comparou-se naquele momento a Xerazade: quanto mais e melhor narrava, mais seguro estaria do apoio daquela família. A experiência marcaria sua abordagem da literatura. Pressionado pelas dúvidas da mulher, o senhor Gawin um dia disse: “Hitler, o homem mais poderoso da Europa, decidiu que esse casal deve morrer. Eu, pequeno tipógrafo de Varsóvia, digo que eles devem viver. E agora vamos ver quem vai vencer.” Afluente e famoso anos depois, Ranicki ajudou financeiramente seus protetores pelo resto da vida. Contudo, por muitos anos os Gawin pediram-lhe que não tornasse público seus nomes: tinham medo que o antissemitismo local os prejudicasse.

Grato ao exército soviético, entrou para o partido comunista da Polônia e em 1948, aos 28 anos, foi designado chefe do consulado nacional em Londres. Passou a chamar-se Marceli Ranicki (pronuncia-se Ranítski). Um sobrenome alemão, tanto mais um como Reich, lhe trazia dificuldades. Um ano depois, era chamado de volta a Varsóvia, suspeito de espionar para Israel, e inclusive passou alguns dias numa cela. Percebeu que a razão de seu degredo era de novo o antissemitismo. Voltou a dedicar-se à literatura, como especialista em alemão para uma grande editora local e promotor de saraus e sessões de autógrafos com autores como Heinrich Böll, Max Frisch ou Bertolt Brecht.

Desiludido com o futuro do socialismo, decide finalmente escrever sobre livros e em 21 de julho de 1958 viaja para Frankfurt com 20 marcos no bolso. Tenta a sorte no Frankfurter Allgemeine Zeitung, sendo recebido com descrença. Contorna a situação através de amigos escritores e retomando nome e sobrenome alemão: passa a chamar-se, definitivamente, Marcel Reich-Ranicki. Consegue uma chance naquele jornal, mas não se sente aceito e segue em 1960 para Hamburgo, onde responderia por literatura no prestigioso semanário Die Zeit até 1973, sem no entanto jamais ser convidado para reuniões de pauta. Depois, através do então amigo Joachim Fest (autor dos melhores estudos sobre o nazismo e Hitler), tomaria o lugar do crítico que o esnobou no FAZ, até 1988.

Já de início bateu de frente com a peroração que então reinava na crítica literária alemã, onde ninguém desgostava de nada. Criou então sua marca mais famosa e temida: argumentar clara e objetivamente, sempre evitando palavras estrangeiras e jargões, sobre o que lhe agradava e-ou incomodava numa obra e o porquê, indicando ao final inequivocamente o polegar pra cima ou pra baixo.

Eventualmente consultado pela Academia do Nobel, indicou Heinrich Böll, agraciado em 1972, mas minizava o fato, dizendo que foi voto vencido em outras ocasiões. Em 1980, quando o livro Rituais marcava a afirmação do holandês Cees Nooteboom, um comentário efusivo de Ranicki fez o livro aumentar em 80 mil cópias a tiragem inicial. Segundo a revista Der Spiegel, que lhe dedicou três capas, Ranicki tornou a profissão de crítico reconhecível até em postos de gasolina. Ao término de seus programas de tv, editoras decidiam ainda à noite sobre novas tiragens, livrarias encomendavam remessas, autores e seus admiradores abriam champanha – uns para celebrar, outros para esquecer. Wolfgang Koeppen diria: “Ele escreve sobre mim, logo existo!” Também fez vários desafetos: Peter Handke, Martin Walser, Günter Grass, entre vários outros.

Em 1988, quando começou Literarisches Quartett (programa de TV que duraria até 2001 e rapidamente tornaria Ranicki um superstar), Peter Handke diria a um grande jornal que não lamentaria sua morte. Martin Walser fez de Ranicki personagem não apenas em um, mas em dois de seus livros, e em ambos os casos com quase o mesmo nome (Erlkönig e Ehrl-König) e a mesma ocupação: crítico literário de sucesso. Na primeira vez em 1993, com Ohne einander (não traduzido no Brasil) e na segunda ainda mais contundente, com Tod eines Kritikers (Morte de um Crítico, também não traduzido), em 2002. O segundo desencadeou uma polêmica nacional, que envolveu antissemitismo, durou quase dois meses e teve várias dezenas de artigos longos, de diversos intelectuais, em literalmente todos os grandes jornais do país, além de editoras e programas culturais de TV. (Trívia: no filme Viagem [2012], um crítico literário é jogado do terraço de uma sessão de autógrafos por um autor indignado, intepretado por Tom Hanks. Não por acaso um dos diretores da obra era o alemão Tom Tykwer.)

Seu talento televisivo era igualmente impressionante. Nunca era visto com qualquer tipo de anotação, detestava leituras e citações e quando o fazia era de cor. Evidenciava um agudo senso de oportunidade a todo momento, como durante uma transmissão ao vivo em um belo fim de tarde em Salzburg, quando um enorme trovão irrompeu enquanto ele falava de um livro de... Martin Walser. Parou por alguns segundos até o ruído cessar completamente, olhou para o céu sem hesitar e perguntou: É permitido dizer algo contra Walser? Fingiu escutar qualquer coisa e continuou falando para câmera, sorrindo como um vencedor.

Com Günter Grass teve outra polêmica nacional, que começou em agosto de 1995 na capa do Der Spiegel: Ranicki aparece rasgando em dois o livro Um Campo Vasto (acre seria mais exato), um dos mais ambiciosos (remonta a 1848 e tenta explicar a Reunificação Alemã em 1990) desse que quatro anos depois receberia um prêmio Nobel. Afetuoso (Ranicki conviveu com Grass no Gruppe 47 - um amplo e longevo círculo literário, organizado pelo escritor Hans Werner Richter -, onde escutou impressionado trechos então inéditos de O Tambor), desconstrói passo a passo o protagonista da história, revelando mais que uma inspiração em Theodor Fontane, mas bom número de apropriações duvidosas de diferentes trechos da obra desse mestre realista do século 19.

Nessa desconstrução de Um Campo Vasto, foi impiedoso com a frase: 'Tudo que se chama alemão é dominado pela mediocridade.' E justificou: “Nessa visão, sou especialmente sensível desde que pela primeira vez fui confrontado com um comentário antissemita - eu era ainda criança e estava numa escola alemã. Receio nacionalizações e generalizações do tipo. Nós já sabemos aonde isso levou. Agora você talvez sinta que venceu e eventualmente dirá que a frase não é sua, mas do grande Fontane. Pode até ser, não estou certo, em todo caso: besteira segue sendo besteira.”

À época Grass perguntou ao vivo a Ranicki: -Você é alemão, polonês ou o que? Ranicki respondeu no ato: Sou meio alemão, meio polonês e totalmente judeu. Depois, admitiria que foi uma frase de efeito, acrescentando que na verdade se sentira estrangeiro em todos os lugares e que essa tensão permeou sua vida inteira, impulsionando seu trabalho. Era um homem solitário, perdeu várias amizades, como Joachim Fest e o próprio Grass, e afirmava que a função essencial de crítica era “botar o lixo pra fora”.

Talvez a principal chave do sucesso de Ranicki tenha sido a paixão por simplificar. Hellmuth Karasek, também crítico consagrado, lembra um comentário de seu 'chefe' no Literarisches Quartett: “[certa vez ele disse] Não me interessam histórias de esquimós. O que fazer com isso? Assim, fácil, ele formulava seus argumentos. Difícil era depois desconstruir essas proposições. Isso era o genial nele.” Outras diretrizes ele repetiu várias vezes na televisão ou nos jornais. A primeira era “Clareza é a cortesia do crítico” e a última “O maior dos imperativos é entreter.” Para o colega Wolfram Schütte, esses seriam seus maiores defeitos: “A tradução da literatura na linguagem e concepção deste resenhista é uma morte lenta e fria. Certos amantes da literatura também são sua perdição. Ele é um desses.”

27 janeiro de 2012, em sessão que anualmente comemora a libertação de Auschwitz no Bundestag, o parlamento alemão, Marcel Reich-Ranicki formularia suas últimas frases memoráveis: “Até hoje não se passou um dia sem que eu lembrasse do gueto. Aquilo ninguém esquece. A música e a poesia me ajudavam a suportar. Quando a qualquer momento você pode ser deportado para um campo de concentração, não há calma para se ler Guerra e Paz, ou Anna Karenina, mas poesia, sim.” Por Marcelo Oliveira da Silva, publicado no jornal Zero Hora em 3 de outubro de 2013

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